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Cidade goiana bloqueia vacinação de quilombolas por suspeita de fraude

Secretária municipal de Saúde de Niquelândia pediu ao MPF para apurar listas de associações de povos tradicionais que seriam imunizados


Goiânia – Apesar de ser definida como uma das prioridades pelo Plano Nacional de Imunização (PNI), a vacinação de quilombolas contra a Covid-19 abriu uma batalha entre quatro associações dos povos tradicionais e a Prefeitura de Niquelândia, cidade onde elas estão localizadas, a 305 km de Goiânia. Há suspeita de fraude.

O município proibiu a aplicação de 3.096 doses enviadas ao grupo, em março, pelo Ministério da Saúde, por suspeitar de irregularidades nas listas produzidas pelas associações, com nomes de possíveis quilombolas. O Ministério Público Federal em Goiás (MPFGO) investiga existência, ou não, de suposta fraude.


Em conversa com o Metrópoles, a secretária municipal de Saúde de Niquelândia, Maria Aparecida Gomes Machado, disse considerar “muito alta” a quantidade de quilombolas que devem receber a vacina na cidade, conforme o número repassado pelas associações. Presidentes das entidades rebateram.

No mês passado, a cidade recebeu do governo federal doses da vacina, depois de a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) encaminhar as listas repassadas pelas associações com a relação de quilombolas registrados a cada uma delas e que deveriam ser imunizados. Não houve checagem prévia por parte do município.

“Não tive acesso a essas listas”, disse a secretária, ressaltando que não viu os nomes antes de eles serem encaminhados por sua própria equipe ao Ministério da Saúde. A gestora afirmou que só foi saber a quantidade de vacinas destinadas a quilombolas depois de as doses chegarem ao município. “Vi que o número era muito alto”, afirmou.


O Metrópoles teve acesso à lista de uma das quatro associações quilombolas, com cerca de 400 nomes de possíveis descendentes de escravizados, especificação de idade deles e de possível comorbidade. Diversas faixas etárias estão relacionadas no documento. A mais nova é uma menina de 10 meses, e o mais velho, um idoso de 87 anos.


“Não vai liberar”

“Enquanto não tiver uma decisão de como realmente funcionam essas associações, a gente não vai liberar os imunizantes”, afirmou a secretária, sem explicar por que não houve a checagem no município antes. “Enquanto tiver pessoas mais velhas na fila, acho injusto [vacinar mais jovens]”, disse.


A lista a que o portal teve acesso inclui diversas crianças e adolescentes, que, até o momento, não são estão definidos como prioridade pelo Ministério da Saúde para a vacinação, já que o foco, por enquanto, são os mais adultos e idosos. Contudo, a maioria das pessoas relacionadas no documento é adulta até a faixa dos 80 anos.

A secretária também criticou o fato de os quilombolas reivindicarem vacinas, mas não viverem isolados. “Aqui, os quilombolas moram mais nas cidades, esparramados na rua, do que na zona rural”, afirmou. “A gente conhece pessoas associadas que não têm nada a ver com gente quilombola”, emendou.

No entanto, em seguida, após ser questionada pela reportagem para mais detalhes, a secretária disse não saber qual associação pratica a suposta fraude em registros, como apontado pela gestora.

Apuração em andamento

Para ser declarada quilombola, a pessoa deve pertencer a uma comunidade reconhecida oficialmente, conforme prevê o Decreto nº 4.887/2003, e comprovar seu vínculo com o território e a cultura tradicional. Além disso, tem de apresentar estudo de árvore genealógica, mostrando sua ligação com antepassados que viveram ou vivem nesses locais e defenderam pessoas escravizadas.

No dia 30 de março, a equipe do gabinete do procurador da República José Ricardo Teixeira Alves, da unidade de Anápolis do MPFGO, fez reunião com os presidentes das quatro associações quilombolas em Niquelândia, para solicitar informações detalhadas de moradores das comunidades tradicionais. A apuração está em andamento.

Um dos objetivos do MPFGO é comparar números de quilombolas na região que estão associados e registrados em atas das associações antes e depois da pandemia da Covid-19. A ideia é saber se as listas estão com dados repetidos, inconsistentes e superestimados, ou não.


Reação à secretária

Presidente da Associação Urbana e Rural dos Remanescentes de Quilombo Rufino Francisco, João Souza de Oliveira, de 70 anos, rebateu a desconfiança da secretária sobre o número de quilombolas no município. Afirmou que, até segunda-feira (12/4), enviará ao MPF lista atualizada com mais de 3 mil nomes de quilombolas só da associação presidida por ele, criada em 2010.

“Mandei [a primeira] lista que não foi completa, e a que vou mandar na segunda tem mais de 3 mil associados à nossa entidade”, adiantou o presidente. “Se eu fosse cadastrar todos, a lista teria mais de 10 mil pessoas. Niquelândia foi criada por quilombolas, praticamente”, acrescentou. A cidade tem 48 mil habitantes e 286 anos.


Oliveira assumiu a presidência da associação em 2019, depois de uma troca de cadeiras no posto, em agosto de 2018, em decorrência da prisão do então presidente da entidade, Juarez Dias Ferreira. Ele foi acusado de acumular, ilegalmente, ao menos R$ 104 mil por cobrar valores indevidos para fazer o repasse de benefícios sociais gratuitos na cidade. Atualmente, está solto.

Presidente da Associação Quilombola Muquém Vargem Grande, fundada em 2018, Créia Abadia Ferreira França afirmou já ter enviado a relação de seus associados para o MPF. Pontuou que está ansiosa para que sua comunidade seja imunizada logo. O portal não obteve retorno das associações quilombolas Tupiraçaba e do Córrego Dantas.


Crianças

A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) informou que estudos para registro das vacinas contra Covid-19 não incluíram crianças no primeiro momento. Diferentemente de outras viroses respiratórias, a doença causada pelo novo coronavírus raramente acarreta casos graves para essa faixa etária.

Segundo a instituição, já existem estudos em andamento que definirão a segurança e a eficácia desses imunizantes em crianças e adolescentes.


Vacinas em quilombos goianos

Em Goiás, quilombolas adultos que vivem no Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga já foram vacinados. O território está localizado ao longo dos municípios de Cavalcante, Teresina e Monte Alegre de Goiás. Moradores do Quilombo Mesquita, na Cidade Ocidental, no Entorno do Distrito Federal (DF), também começaram a receber proteção contra a enfermidade.



O caso de Niquelândia, porém, retrata as consequências da falta de plano nacional de enfrentamento da pandemia da Covid-19 destinado à população quilombola, que, por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF) em fevereiro, já deveria ter sido criado pelo governo federal.

Imunização subestimada

Em todo o país, o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a Covid-19, do Ministério da Saúde, prevê a imunização de apenas 7% da população quilombola, segundo estimativas da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras e Rurais Quilombolas (Conaq).

A Campanha Nacional de Vacinação calcula a existência de 1,133 milhão de pessoas em comunidades tradicionais quilombolas no Brasil. Estimativa da Conaq, porém, aponta número 14 vezes maior, de 16 milhões.

Desde o início da pandemia, ao menos 236 quilombolas já morreram no país por complicações da doença, entre os 5.299 casos confirmados, segundo monitoramento atualizado pelo Observatório da Covid-19 nos Quilombos. As estatísticas podem ser muito maiores, já que a maioria dos territórios não teve testagem nem registrou o motivo das mortes.

O Ministério da Saúde não se manifestou até a publicação desta reportagem.




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